9.4.06

Padre Pedro ou Água mole em pedra dura...

Ao Flávio.

Antigamente, no interior da Bahia, pouquíssimas cidades dispunham de Padre. Uma vez por ano, ocorriam as "DESOBRIGAS": O padre de determinada paróquia visitava certo número de cidades, vilas, povoados, assistindo suas ovelhas, celebrando casamentos e batizados, viajando em lombo de burro, com um "CAMARADA", espécie de pajem que se encarregava de conduzir a besta que carregava um par de malas com os paramentos e demais utilidades para os trabalhos do padre, desempenhando também o mister de sacristão.

Padre Pedro era pároco em Brotas e prestava assistência à minha pequenina Santo Inácio, onde era hóspede do meu saudoso pai que adorava recepcionar os seus amigos, hóspedes e fregueses com uma "ABRIDEIRA", como ele designava uma dose de boa caninha.

Quando da primeira hospedagem de Padre Pedro na residência dos meus pais onde era localizada sua casa comercial, logo que o camarada terminou seus afazeres - desarrear os animais e mandá-los para o pasto, colocar as malas no aposento do padre - meu pai chamou-o para a tradicional "abrideira" que o camarada/sacristão aceitou com muito gosto. Após saborear uma segunda dose, meu pai perguntou-lhe:

- E o padre, bebe?
O camarada respondeu-lhe: convide-o.

Segue-se então o seguinte diálogo:

- Padre Pedro, aceita tomar uma abrideira?
- Não, seu Pimentel, obrigado, eu não bebo.
- Não faz mal não Padre, pra rebater o sol.

Houve mais umas duas ofertas e outras tantas recusas mas finalmente o bom Padre pegou o copo, degustou a caninha com gosto como qualquer bom consumidor e fez o seguinte comentário:

- Seu Pimentel, o Sr. obriga até as pedras.

É isso aí, Flávio, qual o meu querido pai, você obriga até as pedras...

4.1.06

PAÇOCA E SUAS FILHAS

Tião Paçoca, agricultor na zona rural do Distrito de Itajubaquara, tinha duas filhas: Rosa, a primogênita, fora, em outros tempos, uma mulata bonita, alegre e faceira, portadora de faróis e carroceria capazes de deixar qualquer lusitano maluco. Casou-se com Zé de Joana, e hoje, com oito filhos, fazendo todas as tarefas de casa e ainda ajudando o marido na roça, transformou-se numa velha antes do tempo, magérrima, tal qual o espantalho que tinham no roçado para afugentar os passarinhos ladrões. O velho Paçoca sofria com a transformação de Rosa e punha toda culpa em Zé de Joana, ou melhor, no seu apêndice infra-umbilical, famoso por suas dimensões anormais.

Pretinha, a caçulinha, ao contrário de Rosa, sempre fora magrinha, doentia, "UM FRASQUIM DE VRIDO", como a definia o pai. Ao conseguir o primeiro namorado, foi logo pensando em noivado e casamento; decorridos alguns meses de namoro, resolveram, ela e o pretendente, encarregar Rosa de sondar o velho Paçoca, para o tradicional pedido feito através de "MAL TRAÇADAS LINHAS". Ao saber quem era o pretendente, o velho, que era mulato, ficou branco, manifestando de imediato a sua reprovação, apresentando um monte de razões, não revelando, porém, a principal, ou melhor, a única, e continuou irredutível, sempre que lhe abordavam o assunto. Pretinha, a despeito da recusa do pai, não desistiu do seu bem amado, e tudo fazia pela realização do seu sonho: solicitava a intercessão de amigos, rogava a aprovação do velho aos prantos, até que certo dia Tião resolveu se abrir:

- Mia fia, desiste deste casamento, mire no espelho de sua irmã, veja o que restou daquele mulherão, daquele bundão. Casou, Zé de Joana lhe enfiou a "SELADA" sem pena e sem dó, hoje não tem carne na bunda que dê prá inchê um pastéis. O que será de tu, mia fia, um trenzim magrim que eu óio e num vejo onde iscondê uma pica, querendo casá logo cum quem? cum um irmão de Zé de Joana!!!

1.1.06

TROCA DE NOIVAS

A romaria ao Bom Jesus da Lapa acontece há muitos anos; em tempos remotos, os sertanejos faziam-na a pés, por força de promessa e também por falta de recursos. Reuniam-se, de ordinário, nessa penitência, várias famílias que aproveitavam a oportunidade para a realização de batizados e casamentos, em face da falta de padres no meio rural em que viviam, mesmo nos povoados e vilas adjacentes.

Certa feita, várias famílias residentes em lugarejos do então Distrito de Jordão de Brotas, ora Município de Ipupiara, empreenderam essa peregrinação. Na Cidade da Lapa, depois das homenagens ao Milagroso Bom Jesus, batizaram inúmeros pagãos e realizaram dois casamentos.

No retorno às sua moradas, no primeiro dia de viagem, pernoitaram numa fazenda, numa Casa de Farinha. Noite escura como breu, sem lua, sem uma única estrela no céu, não se enxergava um palmo à frente do nariz. Ao romper da aurora (desconheço a razão do equívoco), ao despertarem, os nubentes se surpreenderam ao encontrarem ao seu lado a noiva que não era a sua. Ao procurarem fazer a "destroca", um dos noivos não concordou e só a muito custo persuadiram-no, dando-lhe de vantagem uma espingarda pica-pau e um rolo de fumo de corda.

Esse fato me foi contado por minha mãe, que ouvira em sua terra natal, Gameleira de Brotas, hoje Ibipetum, como verídico. Muitos anos depois, em Lençóis, o saudoso José Benício de Matos, então Prefeito do Município de Wagner, asssegurou-me haver conhecido um dos noivos, nos garimpos da Chapada Velha, já velhinho, quase centenário, mas ainda lúcido para recordar-se da aventura.

25.9.05

DANÇA DE MOCOTÓ

Quando garoto, ouvi de uma prima, Laura, que viveu algum tempo em casa de meus pais, que no seu torrão natal, Poço do Cavalo, lugarejo roceiro no Distrito de Gameleira, então Município de Brotas, as festas dançantes eram compostas de pares do mesmo sexo, ou melhor, barbado com barbado, e titulavam-nas DANÇA DE MOCOTÓ. Creio que o costume não era imposto pela falta de damas, mas por excesso de pudor daquelas almas simples, naqueles velhos tempos, em paragens longinquas da civilização, onde "JUDAS PERDEU AS BOTAS".

Causou-me surpresa, porém, tomar conhecimento que, ainda nos anos 50, tal prática ainda acontecesse: meu saudoso conterrâneo, Naylor Mendes Gomes, Engenheiro Civil, diplomado no início da década de 50, contou-me a história a seguir, que lhe fora contada pelos protagonistas, dois colegas seus de turma: recém diplomados, foram contratados a trabalhar na construção de rodovias, no alto sertão do estado de Sergipe. Por conveniência do serviço, ficaram sediados num povoado distante, isolado, super atrasado, um fim de mundo.

Mês de junho, foram convidados para uma festa de São João na residência do representante do Prefeito do município. Chegaram ao local da festa quando já havia iniciado o arrasta-pé e notaram estarrecidos duas salas iluminadas com candeeiros "PLACA" a querosene: dançavam homem com homem em uma e mulher com mulher na outra. Os jovens doutores ficaram por ali desconfiados, serviram-se de aipim e licor de genipapo, quando, de repente, chega um mulato forte, com estatura de cerca de 1,80m, e dirigindo-se a um dos engenheiros que era bem baixinho, mandou o convite:

- O doutô aceita dançar comigo?

O infeliz rapaz respirou fundo, raciocinou num relance, e não encontrou outra saída:

- O Sr. me desculpe mas já estou comprometido aqui com o colega, fica para outra oportunidade.

Enlaçou então o companheiro e sairam a dançar em direção à porta de saída.

28.8.05

TOTONHO DA LOURA

Descendente de uma velha famosa, imortal, cosmopolita, a "VELHA CARIA" (considerar o cacófato), não perdia parada, ganhando até de Santo Antônio, o Santo de sua devoção.

Pequeno criador, tendo um garrote desgarrado do rebanho, desaparecido, sem que nenhum vaqueiro soubesse do seu paradeiro, apelou para o Santo casamenteiro:

- Meu Santinho, mande de volta o meu garrote que eu lhe prometo metade do dinheiro que Pedro Marchante me pagar por ele.

Milagre ou coincidência, uma semana após a promessa, eis que lhe aparece um vaqueiro da região, a quem solicitara ajuda, trazendo-lhe o ruminante.

Preso o animal no curral do município, o finório xará do Santo olhou longamente o seu garrote e, dirigindo-se ao seu santo homônimo, falou:

- Me perdoi Santo Antônio, o véio (referia à sua pessoa chamando-o de véio) tava vadiando com vancê; também vancê num carece de dinheiro, né meu santinho?

Dia seguinte, indo com Pedro Marchante ao curral, para fecharem negócio, encontrou-o vazio. O garrote forçou uns moirões apodrecidos e evadiu-se.

Novas promessas a Santo Antônio, pedidos de desculpas e, dias depois, o garrote outra vez recuperado.

Avisado de que o animal encontrava-se no curral, não perdeu tempo: mandou um emissário ao Pedro Marchante e prendeu um galo junto ao garrote.

Perguntado por quanto vendia o garrote, o espertalhão disse que por dois mil reis. O comprador perguntou-lhe se não estaria brincando.

- Nunca falei tão sério. Só que "véio" só lhe vende o bichinho se vancê comprar o galo.

- E quanto custa o galo?

- Quinhentos mil reis.

Depois de alguma pechincha, fecharam negócio: o garrote por dois mil reis e o galo por quatrocentos mil reis.

Chegando em casa, Totonho entregou à sua esposa, Dona Joaquina, um mil reis (era assim representado numericamente: 1$000) para ser colocado no cofrinho de Santo Antônio, no oratório.

29.7.05

GERACINA

Ao JH

Lá vem a chuva, lá vem o vento,
mulher de soldado não é gente.
O pau entrou e saiu,
moça casou e pariu.


Era uma mulher feia, suja, cabelo desgrenhado, idade indefinida, quase sempre embriagada e monologando de maneira ininteligível, levando as pessoas simples a crer que ela conversava com os seus caboclos, dada a sua fama de feiticeira, possuidora dos livros de São Cipriano e da Bruxa Évora. Essas pessoas, geralmente rameiras e garimpeiros infusados, valiam-se dos seus ebós e acreditava na sua eficácia.

Menino tímido que fui, eu a temia, evitava sua presença.

Naquele fim de tarde de abril, presenciei sua prisão quando estreava uma bola nova, presente de aniversário, num campinho em frente à cadeia. Um dos meus companheiros de pelada, um garoto mais afoito, foi até o interior do quartel e nos informou haverem colocado Geracina no tronco (antigo instrumento de tortura). Pouco tempo depois, ao regressarmos às nossas casas, encontramos Geracina na pracinha, entoando os versos acima, de sua autoria, que a levaram à prisão, alusivos à esposa do cabo Cornélio que, segundo as más línguas, ornamentava a cabeça do esposo e à sua filha Dadinha que, ao contrair núpcias com o soldado Tião - aproveitando a Santa Missão, pois não havia padre em Santo Inácio - pariu logo após a cerimônia, tendo a bolsa partida ainda na igreja, molhando a batina do Missionário Pascoal que ajudou a conduzi-la à casa do carcereiro, em frente da igreja.

Durante vários dias não houve outro assunto na cidadezinha que não fosse a evasão de Geracina da prisão, por força das suas rezas fortes.

Fabiano Bello, fazendeiro bem sucedido mas que teve os seus dias difíceis, conversando comigo, comentando seus percalços, aludindo à loucura passada de sua esposa, Dona Jardelina, admitia sua cura às rezas de Geracina. Reproduzo, textualmente, suas palavras:

- Menino, eu tenho sofrido muito nesta minha vida. Quando Jardelina teve doente da cabeça, um dia piorou e saiu de casa correndo em direção ao lajedo; corri para pegar ela mas só consegui botar as mãos nela no APAGAR DA FLORA. Ela falava tudo quanto era língua, até a língua do Papa de Roma.

Disse-me que teve a felicidade de ter sido seguido por Geracina, durante a captura, e que esta conseguiu acalmar a doente com sua rezas, que aplicadas mais algumas vezes curou-a para sempre.

Não satisfeito com o exemplo de sua esposa, mostrou-me um punhal, conservado do tempo da jagunçada, tomado de um cabra que ferira gravemente um seu trabalhador que, já desenganado, perdendo muito sangue, foi salvo pelas rezas da Geracina.

27.7.05

CORONÉIS E VIRA-LATAS

Nos tempos das patentes compradas, da Guarda Nacional, reinava em Gameleira do Assuruá o Coronel Reginaldo, chefe político, contando grande número de correligionários, mas também muitos adversários, dentre os quais o mais intransigente e radical era o fazendeiro Galdino, proprietário da Fazenda Tanque, onde residia, a poucos quilômetros de Gameleira.

Naqueles tempos não havia estradas de rodagem naquelas plagas, sendo as viagens feitas em montarias, de preferência burros e mulas, com mais resistência para as estradas de serras.

Certo Promotor Público da Comarca de Xique-Xique, jovem nascido e educado na capital, teve de fazer esse tipo de viagem, acompanhado por um amigo, conhecedor de toda a região do Assuruá, de Xique-Xique a Gentio do Ouro. No primeiro dia de viagem pernoitaram na Fazenda Tanque, Na residência do Sr. Galdino, amigo do companheiro do Promotor. Feita a apresentação, o fazendeiro, apertando a mão do Promotor, falou:

- Muito prazer, seu coronel.

O jovem bacharel, não conhecedor desse tipo de tratamento, ponderou:

- Perdão, Sr. Galdino, eu não sou coronel, sou Promotor Público da Comarca de Xique-Xique.

O fazendeiro retrucou:

- Não se importe, não, meu filho, eu chamo todo cachorro de coronel, pra desmoralizar o Reginaldo.

CARNAVAL NA MERDA

Sem dúvida, Valdevino Macieira foi uma figura marcante em Santo Inácio. Conheci-o já casado, com filhos, mas ainda festeiro e irreverente.

Juiz de Paz, sempre que celebrava um casamento em lugarejos afastados, de pessoas simples, inevitavelmente fazia uma saudação aos noivos, valendo-se de uma oração decorada de um livro, a qual, segundo ele, servia, trocando palavras, para eventos diversos: casamento, batizado, sepultamento, etc.

Folião carnavalesco, sua fantasia de todos os anos era sempre uma casaca ou fraque, (um casaco longo com uma espécie de cauda) ornamentado com fitas coloridas.

Tomando parte em um baile de carnaval na residência de Adenor Olivença (não havia clube em Santo Inácio, os bailes eram realizados em residências), a certa altura da noite foi acometido de uma cólica intestinal; não dispondo o local de instalação sanitária, o nosso folião teve de sair pelos fundos, atravessar um pequeno regato e acocorar-se atrás de uma mamoneira para satisfazer as necessidades. Terminado o "serviço", ao levantar-se para se recompor, ouviu um barulho semelhante a um "PLOFT". Receioso, riscou um fósforo mas nada viu de anormal, a não ser o côcô meio "esparramado". Voltou ao baile e começou a dançar, mas então o salão foi tomado por um insuportável mau cheiro. Iniciam um exame rigoroso e logo descobrem que a origem do fedor era a casaca do Valdevino, que foi intimado a retirar-se imediatamente. É que, ao abaixar-se, a cauda do casacão ficou entre suas pernas, recebendo toda a carga de merda.

Não é que que o cara-de-pau, depois de um banho e troca de roupa, voltou ao baile e dançou até o amanhecer?

Isso me foi contado pelo próprio, num baile de carnaval, usando a mesma casaca.